Ao mesmo tempo que é anunciado que o consumo de antidepressivos e ansiolíticos está a aumentar, chega a Portugal, via Revista Única do Expresso algo que a BBC já tinha noticiado há dois anos: estudos indicam que os anti-depressivos só ajudam no caso das depressões graves. As farmacêuticas contestam o estudo, mas o Dr. Tim Kendall, Administrador Delegado da Unidade de Investigação do Royal College of Psychiatrists publicou por sua vez uma pesquisa que conclui que as farmacêuticas só publicam estudos com conclusões positivas em relação aos medicamentos por elas produzidos e quer que as empresas sejam forçadas a publicar todos os dados. Por sua vez, o Dr, Andrew McCulloch, da Mental Health Foundation critica o excesso de dependência dos anti-depressivos, quando existem terapias muito mais eficazes para combater a depressão, como a psicoterapia, exercício e outras. É também recomendado que nenhuma pessoa que sofra de depressão largue os medicamentos sem falar com o seu médico ou terapeuta.
Reproduzimos de seguida a informação veiculada pela revista Única.
Sharon Begley com Sarah Kliff (exclusivo Expresso/ Newsweek)
Embora o ano esteja no início, já me trouxe o primeiro dilema moral. No princípio de Janeiro, um amigo contou-me que a sua resolução de Ano Novo era vencer a depressão crónica de uma vez por todas. Ao longo dos anos, tinha gasto rios de dinheiro com antidepressivos, mas realmente nenhum tinha ajudado de modo duradouro, e quando os efeitos secundários se tornaram tão desagradáveis que parou de os tomar, a síndrome de abstinência (cólicas, vertigens, dores de cabeça) foi uma tortura. Será que eu sabia de alguma investigação que o pudesse ajudar a decidir se um novo antidepressivo prescrito pelo seu médico conseguiria finalmente aclarar o seu negrume crónico do meio-dia?
O dilema moral era este: claro que sabia dos mais de 20 anos de investigação sobre antidepressivos, desde os velhos tricíclicos até aos mais novos Inibidores Selectivos da Recaptação da Serotonina (ISRS ou SSRI) que actuam sobre a serotonina (Zoloft, Paxil e o avô de todos eles, o Prozac, bem como os seus descendentes genéricos), até aos mais recentes, que também actuam sobre a noradrenalina (Effexor, Wellbutrin). Estudos mostraram que os antidepressivos ajudam cerca de três quartos das pessoas com depressão. Mas desde a publicação de um estudo seminal em 1998, cujas conclusões foram reforçadas por uma notável investigação no "The Journal of the American Medical Association" ("JAMA") no mês passado, que essa evidência surge com um grande asterisco. Sim, os medicamentos são eficazes, na medida em que atenuam a depressão na maioria dos pacientes. Mas este benefício é pouco maior do que quando os pacientes tomam um placebo, sem o saber e como participantes num estudo. Tal como cada vez mais cientistas que estudam a depressão e os medicamentos que a tratam concluem, isso sugere que os antidepressivos são basicamente caramelos caros.
Daí o dilema moral. O efeito placebo - que é um benefício médico que se obtém a partir de uma medicação inerte ou de outro tratamento simulado - tem por base a santa trindade da fé, da expectativa e da esperança. Mas dizer-se isso a alguém com depressão, que está a ser ajudado por antidepressivos ou que (como o meu amigo) espera ajuda, ameaça deitar por terra todo o castelo de cartas. Explicar que está tudo na sua cabeça, que a razão por que está a beneficiar é a mesma razão por que o Dumbo da Disney podia inicialmente voar só com uma pena agarrada ao corpo - acreditar faz isso acontecer - e a magia dissipar-se-á como pó no meio de um vendaval. Portanto, em vez de dizer tudo isto ao meu amigo, acobardei-me.
Efeito placebo
Ao que parece, não sou a única a ter inquietações morais ao denunciar os antidepressivos. Essa primeira análise, em 1998, examinou 38 estudos patrocinados por fabricantes envolvendo mais de 3000 doentes depressivos. Os autores, os investigadores de psicologia Irving Kirsch e Guy Sapirstein da Universidade do Connecticut, viram - como toda a gente - que os doentes melhoraram de facto com os antidepressivos. Estas melhoras, demonstradas em inúmeros ensaios clínicos, são a base da afirmação generalizada que os antidepressivos funcionam. Mas quando Kirsch comparou as melhoras nos doentes que tomavam medicamentos com as melhoras observadas nos que tomavam placebos - os ensaios clínicos comparam sempre um fármaco em experiência com um placebo - viu que a diferença era mínima. Os doentes que tomaram a medicação simulada melhoraram em 75 por cento dos casos, tanto quanto os que tomaram medicamentos. Dito de outro modo, três quartos do benefício dos antidepressivos parecem ser um efeito placebo.
Qual o impacto deste estudo? O número de americanos que toma antidepressivos duplicou numa década, passando de 13,3 milhões em 1996 para 27 milhões em 2005. Sem dúvida que os medicamentos ajudaram dezenas de milhões de pessoas, e Kirsch certamente que não defende que os pacientes sofrendo de depressão parem de tomar os fármacos. Pelo contrário. Mas eles não são necessariamente a melhor primeira escolha. A psicoterapia, por exemplo, funciona para depressões moderadas, graves e mesmo muito graves. E embora para alguns doentes, a psicoterapia em combinação com um tratamento inicial com antidepressivos funcione ainda melhor, a questão é como actuam os medicamentos? O estudo de Kirsch, bem como outros mais recentes, concluem que a parte de leão do efeito dos medicamentos vem do facto de os doentes esperarem ser ajudados por eles e não por qualquer acção química directa no cérebro, especialmente para qualquer coisa que não seja uma depressão muito grave.
Tal como sugere o aumento inexorável do uso de antidepressivos, essa conclusão não se pode comparar com a mensagem simplista de que os "antidepressivos funcionam!" (corolário implícito: "mas não perguntem como"). Parte da resistência às conclusões de Kirsch deve-se à sua personalidade, que é tudo menos reservada. Ele não fez muitos amigos com o título insolente da sua comunicação, "Listening to Prozac but Hearing Placebo" ("Ouvindo Prozac mas Escutando Placebo"). Contudo, uma crítica não pôde ser refutada: Kirsch tinha analisado apenas alguns dos estudos sobre antidepressivos. Talvez se os tivesse incluído todos, os medicamentos se revelassem efectivamente superiores aos placebos.
Kirsch concordou e decidiu alargar o seu conjunto de dados a 47 estudos apoiados por empresas - sobre o Prozac, o Paxil, o Zoloft, o Effexor, o Serzone e o Celexa. Em pouco mais de metade dos estudos publicados e não publicados, ele e os colegas relataram em 2002, o fármaco também não aliviou a depressão mais eficazmente do que um placebo. "E o benefício suplementar dos antidepressivos foi ainda menor do que aquilo que observámos quando analisámos só os estudos publicados", recorda Kirsch. Cerca de 82 por cento da resposta aos antidepressivos - não os 75 por cento que ele tinha calculado ao examinar apenas os estudos publicados - também tinha sido conseguida por uma medicação simulada. Agora Kirsch tinha a certeza. "A crença de que os antidepressivos conseguem curar quimicamente a depressão está simplesmente errada", disse-me ele em Janeiro, na véspera da publicação do seu livro "The Emperor's New Drugs: Exploding the Antidepressant Myth" ("Os Novos Medicamentos do Imperador: Explorando o Mito dos Antidepressivos").
Um segredo sujo?
O estudo de 2002 desencadeou uma violenta discussão, mas cada vez mais cientistas se foram convencendo de que Kirsch tinha alguma razão. Mesmo os defensores dos antidepressivos concordaram que os fármacos têm efeitos "relativamente pequenos". "Há bastante tempo que muitos deixaram de ficar impressionados pelo valor das diferenças observadas entre tratamentos e controlos", escreveu o investigador de psicologia Steven Hollon, da Universidade Vanderbilt - "o que alguns dos nossos colegas referem como 'o segredinho sujo'". Na Grã-Bretanha, a entidade que avalia quais os tratamentos que são suficientemente eficazes para o governo os pagar, deixou de recomendar os antidepressivos como terapia de primeira linha, especialmente para a depressão ligeira ou moderada.
Mas se os especialistas sabem que os antidepressivos são pouco melhores do que os placebos, muitos doentes e médicos ignoram-no. Alguns médicos mudaram o seu receituário, diz Kirsch, mas muitos mais "reagiram com cólera e incredulidade". Compreensivelmente. Por um lado, a depressão é uma doença devastadora, mal diagnosticada e mal tratada. Naturalmente, os médicos ficaram horrorizados com a ideia de que esses medicamentos pudessem ser miragens. Se isso fosse verdade, como é que os médicos poderiam ajudar os seus doentes?
Mas a questão de se saber se os antidepressivos - que em 2008 venderam o equivalente a 6,96 mil milhões de euros nos Estados Unidos - têm qualquer efeito para além da fé dos doentes neles foi demasiado importante e assustou os investigadores. Os proponentes dos fármacos foram fazendo exigências cada vez mais fracas. A sua última posição é que os antidepressivos são mais eficazes do que um placebo em doentes que sofrem de depressão grave.
Assim concluiu o estudo do "JAMA" em Janeiro. Numa análise a seis grandes ensaios em que, como habitual, se administraram aos doentes com depressão um placebo ou um fármaco activo, o efeito do medicamento verdadeiro - ou seja, para além do efeito placebo - foi de "não existente a negligenciável" em pacientes com depressão ligeira, moderada e mesmo grave. Só em pacientes com sintomas muito graves (marcando 23 ou mais na escala padrão) se verificou um benefício do fármaco estatisticamente significativo. Esses pacientes representam 13 por cento da população que sofre de depressão. "A maioria das pessoas não precisa de um fármaco activo", diz Hollon, da Vanderbilt, co-autor do estudo. "Muita gente vai dar-se tão bem com um comprimido de açúcar e uma boa conversa com o psicoterapeuta como com a medicação. Não interessa o que faz, mas sim o facto de que se está a fazer alguma coisa." Mas as pessoas com depressão muito grave são diferentes, considera ele. "A minha opinião pessoal é que o efeito placebo pode ajudar um doente, mas para aqueles que sofrem de depressão crónica muito grave, é mais difícil a cura e os placebos são menos adequados", diz Hollon. Porque é que isso acontece continua a ser um mistério, admite o co-autor Robert DeRubeis, da Universidade da Pensilvânia.
Dosagem é indiferente
Talvez os antidepressivos sejam mais eficazes em doses elevadas? Infelizmente, em 2002, Kirsch e os colegas descobriram que as doses elevadas são pouco mais eficazes do que as baixas, melhorando a classificação na escala de depressão dos doentes em média 9,97 pontos versus 9,57 pontos - uma diferença que não é estatisticamente significativa. Contudo, muitos médicos aumentam as doses aos doentes que não respondem a uma dose mais baixa e muitos doentes dizem sentir-se melhor em consequência. Estudos comprovam que é o poder da expectativa: o médico aumentou a minha dose, por isso acredito que vou ficar melhor.
Uma coisa semelhante pode explicar a razão porque alguns doentes que não se sentem ajudados por um antidepressivo se dêem melhor com um segundo ou um terceiro. Isto é muitas vezes explicado como uma "adequação" do doente à medicação e parecia ser confirmado por um estudo de 2006 chamado STAR*D. Os doentes que continuaram a sofrer de depressão depois de tomarem um medicamento foram mudados para um segundo; aqueles que continuaram a não registar melhoras foram mudados para um terceiro e mesmo para um quarto. Não foram utilizados quaisquer placebos. À primeira vista, os resultados ofereciam um raio de esperança: 37 por cento dos doentes melhoraram com o primeiro medicamento, mais 19 por cento com o segundo, mais 6 por cento com o terceiro e mais 5 por cento com o quarto. (Porém, metade dos que recuperaram tiveram uma recaída no espaço de um ano).
Portanto, terá o STAR*D validado a ideia de que a chave para um tratamento eficaz da depressão é adequar o doente ao medicamento? Talvez. Ou talvez as pessoas tivessem melhorado nas fases dois, três e quatro porque a depressão por vezes é aliviada devido a mudanças na vida das pessoas ou porque os níveis de depressão tendem a subir e a descer ao longo do tempo. Sem alguém no STAR*D a receber um placebo, não é possível concluir com segurança que as melhoras registadas nas fases dois, três e quatro aconteceram porque os doentes mudaram para um medicamento que era mais eficaz para eles. Números comparáveis podiam ter sido verificados se os doentes tivessem mudado para um placebo. Mas o STAR*D não testou isso e portanto não pode excluir essa hipótese.
O que nos leva de volta ao dilema moral. Um número estimado entre os 13,1 milhões e os 14,2 milhões de americanos adultos sofrem de depressão clínica. Muitos dos 57 por cento que recebem tratamento (os restantes não se tratam) são ajudados por medicação. Para que as melhoras persistam, precisam de acreditar nos comprimidos que tomam. Mesmo Kirsch avisa - em negrito no seu livro, que estará à venda esta semana - que os doentes que tomam antidepressivos não podem deixar de os tomar subitamente. Isso pode causar graves sintomas de abstinência, incluindo convulsões, tremores, visão turva e náuseas - bem como depressão e ansiedade. Contudo, Kirsch está bem consciente que o seu livro pode ter o mesmo efeito nos doentes que teve a queda da pena mágica no Dumbo: sem ela, o pequeno elefante estatelou-se na terra.
Não tem problema em ressaltar que a psicoterapia é mais eficaz do que comprimidos ou placebos, com taxas de recaída radicalmente menores. Mas há a pequena questão da realidade. Nos Estados Unidos, a maioria dos doentes é tratada por médicos de família, não por psiquiatras. Estes últimos escasseiam, especialmente fora das grandes cidades e especialmente para crianças e adolescentes. Alguns planos de seguros desencorajam esta assistência e alguns psiquiatras não aceitam os seguros. Talvez manter os doentes na ignorância sobre a ineficácia dos antidepressivos, que para muitos é a sua única esperança, seja um acto de bondade.
Ou talvez não. Como ficou demonstrado pelas críticas explícitas das empresas farmacêuticas e pelos autores do recente artigo no JAMA, cada vez mais cientistas acreditam que chegou a altura de investigar com profundidade as razões sobre a eficácia dos antidepressivos. Quanto a Kirsch, continua a insistir que é importante saber que grande parte do benefício dos antidepressivos se deve a um efeito placebo. Se os placebos conseguem melhorar as pessoas, então a depressão pode ser tratada sem medicamentos, que têm graves efeitos secundários, para já não falar nos preços. Um reconhecimento mais generalizado de que os antidepressivos são uma versão farmacêutica das roupas novas do rei que passeava nu, diz ele, pode incentivar os doentes a procurar outros tratamentos.
(Tradução de Aida Macedo)
Publicado na Revista Única do Expresso de 20 de Fevereiro de 2010
Fonte: Expresso Online
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