domingo, abril 4

Hans Jonas e a Ética da Responsabilidade

Por: José Eduardo de Siqueira, fonte

[...] O Princípio da Responsabilidade de Jonas é uma avaliação extremamente crítica da ciência moderna e de seu braço armado, a tecnologia. Mostra o filósofo a necessidade do ser humano de agir com parcimônia e humildade diante do extremo poder transformador da tecnociência. Palavras-chave: bioética; ética; responsabilidade; tecnologia; tecnociência. "O desafio da futura bioética é que possuimos mais do que nunca conhecimento científico e capacidade tecnológica e não temos, entretanto, o menor sentido de como utilizar esse conhecimento e a tecnologia, sendo que a crise de nossa era é que adquirimos um poder inesperado e devemos usá-lo no caos de um mundo pós-tradicional, pós-cristão e pós-moderno." (H.T. Engelhardt).
Hans Jonas nasceu em 1903 em Mönchengladback, na Alemanha. De origem judia teve o período inicial de sua formação huma-nística na leitura atenta dos profetas hebreus. Sua intensa vida intelectual foi por ele descrita numa conferência pronunciada em outubro de 1986 na Universidade de Heidelberg, por ocasião dos seiscentos anos de fundação daquela Instituição. Aponta três momentos marcantes de sua formação filosófica.
O primeiro tem início em 1921 quando, ainda recém-formado, frequenta na Universidade de Freiburg as aulas de um mestre então pouco conhecido e de nome Martin Heidegger. Segundo Jonas esse foi, por muito tempo, seu mentor intelectual. Em 1924, Heidegger transfere-se para a Universidade de Marburg e Jonas o acompanha. Lá conhece Rudolf Bultmann, e sob sua orientação elabora uma tese sobre a gnose no cristianismo primitivo que é apresentada em 1931. Como decorrência desse trabalho inicial publica, em 1934, o célebre "Gnosis und spätantiker Geist", considerado por ele mesmo como o primeiro grande momento de sua trajetória como filósofo. Nesse mesmo ano, Jonas se vê obrigado a abandonar a Alemanha em função da ascensão do nazismo ao poder. 
O segundo grande momento na vida intelectual de Jonas ocorre em 1966 com a publicação de "The Phenomenon of Life, Toward a Philosophical Biology". Nessa obra estabelece os parâmetros de uma filosofia da biologia. Abre um novo caminho de reflexão sobre a precariedade da vida e mostra o grande alcance filosófico dessa abordagem da biologia, pois reconduz a vida a uma posição privilegiada e distante dos extremos do idealismo irreal e do limitado materialismo. Apresenta o equívoco de se isolar o homem do resto da natureza, imaginando-o desvinculado das outras formas de vida. No epílogo dessa obra estabelece uma idéia geral de seu projeto quando escreve que com "a continuidade da mente com o organismo, do organismo com a natureza, a ética torna-se parte da filosofia da natureza (...) Somente uma ética fundada na amplitude do ser pode ter significado." Não é difícil perceber o vínculo dessa etapa com o terceiro e culminante momento de sua vida intelectual. A busca pelas bases de uma nova ética, uma ética da responsabilidade torna-se a meta de Jonas. Em 1979 publica "Das Prinzip Verantwortung - Versuch einer Ethic für die Technologische Zivilisation" traduzido para o inglês somente em 1984. Partidário do sionismo desde a juventude, Jonas, ao deixar a Alemanha, integra-se em Israel a uma brigada judaica de autodefesa e aí, como oficial da artilharia permanece até 1949. Durante a Segunda Grande Guerra alista-se no exército britânico na luta contra o nazismo. Dessa época, tem-se o seguinte depoimento: "Cinco anos como soldado no exército britânico na guerra contra Hitler (...) Afastado dos livros e de toda parafernália da pesquisa (...) Mas algo mais substantivo e essencial estava envolvido. O estado apocalíptico das coisas, a queda ameaçadora do mundo (...) a proximidade da morte (...) tudo isto foi terreno suficiente para se dar uma nova reflexão sobre as fundações do nosso ser e para rever os princípios pelos quais guiamos nosso pensamento sobre elas. Assim, de volta às minhas próprias origens, fui arremessado de volta à missão básica de filósofo e de seu empreendimento nato, que é pensar."
Assim, foi a proximidade com a realidade da morte que fez crescer em Jonas a preocupação com a vida e essa foi a meta que perseguiu com extrema determinação. Fez até mesmo com que ele desafiasse a linha dominante da filosofia do idealismo da consciência, onde havia sido formado. Percebeu-a como herança do dualismo cartesiano e que muito da filosofia moderna estacionara na dicotomia entre mente e corpo. Era preciso repensar a ética.
A nova ética proposta por Jonas Hans Jonas aponta para o choque causado pelas bombas atómicas de Hiroshima e Nagasaki como o marco inicial do abuso do domínio do homem sobre a natureza causando sua destruição. Diz textualmente numa entrevista publicada no 171 da revista Esprit do mês de maio de 1991: "Ela pôs em marcha o pensamento em direcção a um novo tipo de questionamento, amadurecido pelo perigo que representa para nós próprios o nosso poder, o poder do homem sobre a natureza". Porém, mais do que a consciência de um apocalipse brusco, ele percebeu o sentimento de um possível apocalipse gradual decorrente do perigo crescente dos riscos do progresso técnico global e seu uso inadequado. Até então, o alcance das prescrições éticas reduzia-se ao âmbito da relação com o próximo no momento presente. Era uma ética antropocêntrica e voltada para a contemporaneidade. A moderna intervenção tecnológica mudou drasticamente essa plácida realidade, colocando a natureza para uso humano e passível de ser alterada radicalmente. Assim, para Jonas, o homem passou a manter com a natureza uma relação de responsabilidade, pois ela se encontra sob seu poder. Grave, também, além da intervenção na natureza extra-humana, é a manipulação do património genético do ser humano que poderá introduzir alterações duradouras de imprevisíveis consequências futuras. Conclui dizendo que é necessária uma nova proposição ética que contemple a natureza e não somente a pessoa humana. Esse novo poder da acção humana impõe alterações na própria natureza da ética. Todas as éticas tradicionais intercombinavam mutuamente: obedeciam as seguintes premissas que

1. A condição humana, resultante da natureza do homem e das coisas, permanecia fundamentalmente imutável para sempre. 
2. Baseado nesse pressuposto, podia-se determinar com clareza e sem dificuldade o bem humano. 
3. O alcance da ação humana e de sua conseqüente responsabilidade estava perfeitamente delimitado. Todo bem ou todo mal que sua capacidade inventiva pudesse proporcionar situava-se sempre dentro dos limites de ação do ser humano, não afetando a natureza das coisas extra-humanas. A natureza não era objeto da responsabilidade humana, pois cuidava de si mesma. A ética tinha que ver com o aqui e o agora. 
Em substituição aos antigos imperativos éticos, entre os quais o imperativo kantiano que se constitui no parâmetro exemplar: "Age de tal maneira que o princípio de tua ação transforme-se numa lei universal", Jonas propõe um novo imperativo: "Age de tal maneira que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica" ou formulado negativamente "não ponhas em perigo a continuidade indefinida da humanidade na Terra". A tremenda vulnerabilidade da natureza submetida à intervenção tecnológica do homem mostra uma situação inusitada, pois nada menos que toda biosfera do planeta torna-se passível de ser alterada, o que torna imprescindível considerar que não somente o bem humano deve ser almejado, mas também o de toda a natureza extrahumana.
Outras possíveis intervenções na natureza própria do ser humano revelam as proporções do desafio para o pensamento ético com relação à condição humana propriamente dita. Jonas elenca uma série de interrogantes críticas. Com relação ao prolongamento da vida humana, ele pergunta: Até que ponto isto é desejável? E, sobre o controle da conduta humana, devemos provocar sentimentos de felicidade ou de prazer na vida das pessoas através de estímulos químicos? Com relação à manipulação genética, onde o homem toma em suas mãos sua própria evolução: estaremos qualificados para o papel de criador? Quem serão os escultores da nova imagem do homem? Segundo que critérios e em base de que modelos? Terá o homem o direito de mudar o património genético do próprio homem? E adverte: "Ante um potencial quase escatológico de nossa tecnologia, a ignorância sobre as últimas consequências será em si mesma razão suficiente para uma moderação responsável (...) Há outro aspecto digno de menção, os não-nascidos carecem de poder (...) Que força deve representar o futuro no presente?" Diante de um poder tão extraordinário de transformações estamos desprovidos de regras moderadoras para ordenar as ações humanas. Esse enorme desajuste somente poderá ser corrigido, no entendimento de Jonas, pela formulação de uma nova Ética.
... o homem passou a manter com a natureza uma relação de responsabilidade, pois ela se encontra sob seu poder. (...) Esse novo poder da ação humana impõe alterações na própria natureza da Ética.

O imperativo tecnológico e as dimensões da responsabilidade
Jonas, ao formular o seu imperativo de responsabilidade, está pensando menos no perigo da pura e simples destruição física da humanidade, mas sim na sua morte essencial, aquela que advém da des-construção e a aleatória reconstrução tecnológica do homem e do meio ambiente. Há uma interação entre a pesquisa e o poder. Essa nova ciência leva a um conhecimento anônimo que não mais é feito para obedecer a verdadeira função do saber durante toda a história da humanidade, a de ser incorporada nas consciências, na busca meditada e ponderada da qualidade da vida humana. O novo saber é depositado nos bancos de dados e usado de acordo com os meios e segundo as decisões dos que detém o poder. Há um verdadeiro desapossamento cognitivo, não só entre os cidadãos, mas também entre os cientistas, eles próprios hiperespecializados sem o domínio de todo o saber produzido. A pesquisa, por sua vez, é gerenciada por instituições tecno-burocráticas. A tecnociência vai produzindo conhecimentos que, sem sofrer qualquer reflexão crítica, transformam-se em regras impostas à sociedade que, obediente a essa máquina cega de saber, projeta-se trôpega por um longo e escuro túnel. Husserl, numa famosa conferência sobre a crise da ciência européia, já identificara um buraco cego no objetivismo científico. Era a ausência da consciência de si mesmo. A partir do momento em que, de um lado, ocorreu o divórcio da subjetividade humana, reservada à filosofia, e a objetividade do saber, que é próprio da ciência, o conhecimento científico desenvolveu as tecnologias mais refinadas para conhecer todos os objetivos possíveis, mas se tornou completamente alheio à subjetividade humana. Ficou cego para a marcha da própria ciência, pois a ciência não pode se conhecer, não pode auto-analisar-se com os métodos de que dispõe hoje em dia. É o que Morin denomina "ignorância da ecologia da ação", ou seja, toda ação humana, a partir do momento em que é iniciada, escapa das mãos de seu iniciador e entram em jogo as múltiplas interações próprias da sociedade, que a desviam de seu objetivo e às vezes lhe dão um destino oposto ao que era buscado inicialmente. Para que haja responsabilidade é preciso existir um sujeito consciente. Ocorre que o imperativo tecno-lógico elimina a consciência, elimina o sujeito, elimina a liberdade em proveito de um determinismo. A hiperespecialização das ciências mutila e desloca a noção de homem.
Em vários países latino-americanos, por exemplo, a economia oficial despreza a noção de cidadania quando elabora planos macro-estruturais atendendo a pressupostos emanados de setores financeiros dos países centrais. A idéia de homem foi desintegrada. As subespecialidades da biologia eliminam a idéia de vida humana integral em benefício da concepção de moléculas, de genes, do DNA. Não mais se contempla a idéia do homem total nessa ciência navegante do minúsculo. Esse divórcio entre os avanços científicos e a reflexão ética fizeram com que Jonas propusesse novas dimensões para a responsabilidade, pois "a técnica moderna introduziu ações de magnitudes tão diferentes, com objetivos e consequências tão imprevisíveis que os marcos da ética anterior já não mais podem contê-los". Ciência e tecnologia de mãos dadas: alguns desafios As conquistas da ciência se expressam pela tecnologia. A experiência da guerra e, posteriormente, as investigações espaciais e os grandes laboratórios industriais evidenciam que o desenvolvimento técnico depende estreitamente da ciência e o progresso da ciência depende fundamentalmente da técnica. A ciência cria novos modelos tecnoló-gicos e a técnica cria novas linhas de objetivos científicos. A fronteira é tão tênue que não se pode identificar onde está o espírito da ciência e a ação da tecnologia. Ciência e ecnologia, alma e corpo do novo imperativo que comanda os passos das investigações básicas, bem como da biologia, da física, da neurologia, da genética, enfim, daquilo que consideramos os tão necessários avanços do conhecimento. Básica ou aplicada, a investigação é sempre tecnocientífica e a simples observação do que sucede em um laboratório de pesquisa não permite distinguir se são procedimentos aplicados ou não. Sempre e em todo lugar, o aparato tecnológico está presente e tem peso decisivo. A técnica se converte na essência do poder e passa a ser manifestação natural das verdades contidas na ciência. Se a ciência teórica podia ser chamada de pura e inocente, a tecnociência, ao ser intervencionista e modificadora do mundo não o é. A práxis deve sempre ser passível de uma reflexão ética. Exatamente por isso, as questões éticas se colocam hoje no plano das investigações chamadas básicas, pois o projeto de saber leva inevitavelmente ao fazer e ao poder. Num contexto contemporâneo a pergunta kantiana: "O que posso saber?" deve conter a questão: O que posso fazer ou o que posso fabricar? O questionamento ético, portanto, ocorre em todos os instantes da produção do conhecimento científico. A pergunta que Jonas formula é: "O que poderia satisfazer mais a uma busca consciente da verdade?" Recorda as palavras de Oppenheimer que após anos trabalhando em um laboratório na busca da fissão nuclear e observando sua aplicação em Hiroshima teria assinalado que, naquele momento, o cientista puro tomou conhecimento do pecado. Desde então, a paz de consciência dos cientistas foi abalada em todos os campos da investigação. Sempre presente estava a dúvida: O que posso fazer? Quando hoje alguns cientistas preocupados com seus labores dizem irritados: "Estamos perdendo tempo com essas reflexões filosóficas que a nada conduzem e nos impedem que nos debrucemos sobre nossos microscópios!", recebem de Gadamer a seguinte resposta: "Não é verdade! As idéias gerais são vitais, a necessidade que há de integrar nosso saber é muito mais universal do que a universalidade das ciências!" Oxalá tenha razão Popper quando afirma que "a história das ciências, como a de todas as idéias humanas, é uma história de sonhos irresponsáveis, de teimosia e de erros. Porém, a ciência é uma das raras atividades humanas, talvez a única, na qual os erros são sistematicamente assinalados e, com o tempo, constantemente corrigidos." Diante dessa afirmação de Popper é mandatório indagar sobre como se considerar, então, as vítimas fatais da tecnociência. O que falar, por exemplo, sobre as vítimas de Hiroshima e Nagasaki? Não se concebe, portanto, hoje, uma ciência que não esteja alicerçada numa sólida consciência ética do pesquisador, principalmente levando-se em conta que ele não mais detém habitualmente o cargo de mando, mas sim está a serviço de gestores do poder que nem sempre cultivam preocupações dessa natureza. É preciso considerar que a ciência não tem a missão providencial de salvar a humanidade, porém, detém poderes ambivalentes sobre o desenvolvimento futuro da humanidade. Indiscutivelmente houve um avanço extraordinário quando a ciência, no século XVII, desvinculou-se da religião e do Estado e, desde então, criou seu próprio imperativo: "conhecer por conhecer", sem respeitar limites e gozando de total liberdade. Hoje, vivemos um rico momento de autocrítica. Parafraseando um pensador francês contemporâneo, que disse ser a guerra um fato complexo demais para que a sociedade a deixe exclusivamente nas mãos dos generais, diríamos que a tecnociência é poderosa demais para que a deixemos exclusivamente na seara dos cientistas. Mumford em Técnica e Civilização , considera que há que se ter em conta o equívoco que cometemos em subestimar nossa capacidade de integrar tecnologia e sociedade. Segundo o autor, as novas tecnologias e inventos desacom-panham-se de uma reflexão filosófica porque se acredita ser desnecessário introduzir quaisquer juízos de valores entre máquinas e pensamentos. Em resumo, imagina-se que os males que afligem a sociedade humana podem sempre ter uma solução proporcionada pela ciência. Funda-se, então, a crença de que se pode com a ciência prescindir dos valores, o que passa a ser então, paradoxalmente, o novo sistema de valores. A sociedade esqueceu de considerar que a técnica é autônoma em relação à moral, não lhe devotando nenhuma atenção, pelo contrário, não suporta qualquer juízo moral. A técnica é completamente alheia a um juízo dessa natureza e evolui segundo uma norma inteiramente casual. Não pode o homem construir seu destino baseado numa cega ordem de fenômenos de grande poder de transformação e destituída de valores éticos. Para tanto, torna-se imperioso uma nova filosofia da ciência, o que significa uma mudança paradigmática. A cultura grega dispunha de um saber de grande alcance mas que não conduzia a um significativo poder de transformação. Ao contrário, o saber moderno, de forte assento técnico, se faz acompanhar de um extraordinário poder de transformação, destituído, porém, de uma reflexão ética que exerça moderação sobre o imperial poder da tecnociência. A proposta de um novo paradigma Os cientistas, por serem huma-nos, nem sempre admitem seus erros e limitações, o que faz da aceitação de um novo paradigma uma tarefa de progressiva conversão que não comporta a força, mas sim o convencimento lento e gradual. A ciência tem um compromisso primacial com a compreensão cada vez mais detalhada e refinada da natureza. Faz-se mister reconhecer que os novos paradigmas raramente possuem todos os elementos persua-sivos dos predecessores que, não infreqüentemente prevalecem por séculos, porém, contém o gérmen de respostas mais adequadas para os problemas que apontam para o futuro. Assim é o imperativo de Jonas que ainda não chegou a completar vinte anos e se oferece para substituir o imperativo Kantiano que já comemorou duzentos.
Não pode o homem construir seu destino baseado numa cega ordem de fenômenos de grande poder de transformação e destituída de valores éticos.
Ainda na perspectiva de consi-derar a responsabilidade das ações humanas, desnecessária é a afirmação que o homem, e, somente ele, no reino animal, é capaz de mudar o curso da história da vida com suas intervenções. Numa estrada que se bifurca é o caminhante que detem a opção da escolha. Os rumos são diversos, assim como o destino final. Uma vereda pode terminar num precipício, enquanto a outra numa fonte de águas puras. Assim, parece ocorrer com a tecnologia moderna que vai nos apresentando bifurcações cada vez mais numerosas. É justamente nesses pontos de bifurcação que se impõe a questão da escolha que, quase sempre, ganha contornos apropriados através de uma decisão ética. Diante das bifurcações que se apresentam, o que quer que façamos, quaisquer que sejam os critérios utilizados para nossa opção, somos sabedores que o produto final obtido depende exclusivamente de nossa decisão. A responsabilidade de cada ser humano para consigo mesmo é indissociável daquela que se deve ter em relação a todos os demais. Trata-se de uma solidariedade que o liga a todos os homens e à natureza que o cerca. Parece, portanto, evidente que a resultante final dessa reflexão busque atender também o universal. Concluímos, com Jonas, que o ser humano precisa responder, com seu próprio ser, a uma noção mais ampla e radical da responsabilidade que é a referente à natureza humana e extrahumana, já que a tecnologia hodierna permite ações transforma-doras num espectro que vai do genoma humano ao plano cósmico. A antiga idéia de natureza acomodava-se à inatingível ordem natural que definia os contornos das normas éticas. Hoje, trabalhamos com uma concepção inteiramente distinta de natureza. O curso da existência não é mais dependente de uma lei superior que reserva ao ser humano a condição de espectador, muito pelo contrário, é ele hoje o agente das transformações e tem, à sua mercê, toda a existência e nela intervém como bem lhe aprouver. A idéia de natureza deve, portanto, ser ora considerada como propriedade, domínio do homem. Talvez nem mesmo o próprio Bacon pudesse conceber um poder tão extraordinário, um domínio tão absoluto da natureza. Impossível, diante dessa realidade é não interpor à atitude científica exigências de uma nova responsabilidade ética. O que caracteriza o imperativo de Jonas é a sua orientação para o futuro, mais precisamente para um futuro que ultrapassa o horizonte fechado no interior do qual o agente transformador pode reparar danos causados por ele ou sofrer a pena por eventuais delitos que ele tenha perpetrado. Segundo Paul Ricoeur, o vínculo entre responsabilidade e perigo para a humanidade impõe que se acrescente ao conceito de responsabilidade um traço que o distingua definitivamente da impu-tabilidade. Considera-se responsável, sente-se afetivamente responsável, aquele a quem é confiada a guarda de algo perecível. E o que há de mais perecível que a vida desviada para a morte pela inconsequente intervenção do homem? Assim melhor compreende-se a idéia de vida que se apresenta na formulação do imperativo de Jonas. Ante essa possibilidade escatológica da morte substituindo a vida, compreende-se porque esse futuro longínquo é o lugar de um temor específico para o qual Jonas introduz a figura da "heurística do temor". Um temor que tem por objeto eventuais perigos que ameaçam a humanidade no plano de sua permanência, de sua sobrevivência. Emblemáticos são os perigos que afetam o ecossistema dentro do qual se desenvolvem as atividades humanas ou os que resultam das manipulações biológicas aplicadas à reprodução humana ou à identidade genética da espécie humana ou, ainda, a intervenção química ou cirúrgica sobre o comportamento do homem. Em suma, pela técnica, o homem tornou-se perigoso para o homem, e isso ocorre na medida em que ele põe em perigo os grandes equilíbrios cósmicos e biológicos que constituem os alicerces vitais da humanidade. A ameaça que o homem faz pesar sobre o homem toma, de algum modo, o lugar das ameaças às quais os outros seres vivos já estão submetidos por ações humanas. À vulnerabilidade da vida, o homem da era tecnológica acrescenta um fator desagregador suplementar que é a sua própria obra. A vida no planeta deteve sua própria regulamentação durante muito tempo, pois a própria natureza constituía-se em cerca intransponível para o agir humano. Agora, porém, o agir do homem, deixando de ser regulado por fins naturais, se transforma no centro de um desequilíbrio específico. Hoje percebemos a força desse agente transformador. Por sua dimensão cósmica, por seus efeitos cumulativos e irreversíveis, as técnicas introduzem distorções tão definitivas que criam uma periculosidade sem precedentes na história da vida. A preservação da vida sempre teve um custo, todavia, com o homem moderno, esse custo, esse preço a ser pago pode ser a destruição total. De maneira proporcional ao incremento da periculosidade do homem, cresce em importância sua responsabilidade como tutor de todas as formas de vida. Mapeando o princípio da responsabilidade Umberto Eco apresenta uma apreciação bastante pertinente sobre as preocupações do homem moderno com a responsabilidade. Assim se expressa Eco: "O progresso material do mundo acicatou minha sensibilidade moral, ampliou minha responsabilidade, aumentou minhas possibilidades, dramatizou minha impotência. Ao fazer-me mais difícil ser moral, faz com que eu, mais responsável que meus antepassados e mais consciente, seja mais imoral que eles, e minha moralidade consiste precisamente na consciência de minha incapacidade." O princípio da responsabilidade pede que se preserve a condição de existência da humanidade, mostra a vulnerabilidade que o agir humano suscita a partir do momento em que ele se apresenta ante a fragilidade natural da vida. O interesse do homem deve se identificar com o dos outros membros vivos da natureza, pois ela é a nossa moradia comum. Nossa obrigação, torna-se incomparavelmente maior em função de nosso poder de transformação e a consciência que temos de todos os eventuais danos oriundos de nossas ações, como bem observou Eco. A manutenção da natureza é a condição de sobrevivência do homem e é no âmbito desse destino solidário que Jonas fala de dignidade própria da natureza. Preservar a natureza significa preservar o ser humano. Não se pode dizer que o homem é sem que se diga que a natureza também é . Eis por que o sim à natureza tornou-se uma obrigação do ser humano. O que o imperativo de Jonas estabelece, com efeito, não é apenas que existam homens depois de nós, mas precisamente que sejam homens de acordo com a idéia vigente de humanidade e que habitem este planeta com todo o meio ambiente preservado. Outro aspecto que merece atenção é o lado subjetivo da responsabilidade, ou seja, de que maneira o promotor da ação assume sua intervenção, seja num momento passado ou em ações futuras. Concebendo a subjetivação da responsabilidade, sob a forma de sentimentos, parece estarmos próximos de caracterizar a dimensão íntima da ética das ações. No caso das ações passadas que culminaram em prejuízos, o sentimento de responsabilidade se encontra muito estreitamente ligado à sensação de remorso. É o sentimento do irremediável, pois tratase do sofrimento moral que nasce da impotência para se anular os efeitos de uma catástrofe gerada por uma ação pretérita. Exemplo para-digmático dessa situação encontramos na apreciação de Oppenheimer sobre os efeitos devastadores da bomba atômica que nasceu da busca inicial pura e imparcial do conhecimento da fissão nuclear. Os danos observáveis que se apresentam à reflexão do agente intelectual da transformação mobilizam nele sentimentos de angústia e sofrimento. A prescrição ética não se impõe coercitiva, mas sim como um forte apelo dirigido à liberdade do agente da transformação. E é justamente enquanto apelo singular que a responsabilidade ética se converte em sentimentos. É nesse campo do comportamento humano que Jonas pretende legislar. É nesse momento que a existência se encontra vulnerável e vê sua essência posta em jogo. Reflitamos, por exemplo, sobre a responsabilidade ética relativa ao outro, ao ser humano presente, real e objeto de ações transformadoras da ciência. O outro na qualidade de ser humano guarda, na sua existência, uma exigência radical de respeito pois detém um mandato de vida que, por si só, fala eloqüentemente da necessidade de manutenção de sua integridade. Inimaginável, por exemplo, o "Projeto Genoma Humano" sem a presença da reflexão ética como princípio, meio e fim de todas suas possíveis intervenções. O mesmo se diga das ações sobre a natureza extra-humana. É elementar o conhecimento das repercussões sobre a saúde humana produzidas pela deterioração do meio ambiente. Todos, mesmo que de maneira superficial, conhecem os possíveis cataclismos que ocorrerão em decorrência do super-aquecimento do planeta, ou da progressiva destruição da camada de ozônio ou, ainda, do incontrolável desmata-mento das já escassas reservas florestais do planeta. Assim, há uma representação, no momento atual, de um futuro que talvez não se realize, mas que, no entanto, expõe seu testemunho no presente como caracterização de um infortúnio, imagem do não querido, mas, sobretudo, mostrando enfaticamente a necessidade de se instituir um novo estatuto de responsabilidade dos homens que vise a manutenção da vida humana e extra-humana. Assim, se compreende a tese de Jonas de uma ética voltada para o futuro.
O outro na qualidade de ser humano guarda na sua existência uma exigência radical de respeito pois detém um mandato de vida que, por si só, fala eloqüentemente da necessidade de manutenção de sua integridade.
A responsabilidade é, portanto, na ética, a articulação entre duas realidades, uma subjetiva e outra objetiva. É forjada por essa fusão entre o sujeito e a ação. Ao mesmo tempo há, também, um aspecto de descoberta que se revela na ação propriamente dita e suas conseqüências. A ordem ética está presente, não como realidade visível, mas como um apelo previdente que pede calma, prudência e equilíbrio. À esta nova ordem Jonas dá o nome de Princípio da Responsabilidade. 

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