quinta-feira, abril 1

Viajar

Uma reflexão de José Artur Matos.

Os verdadeiros viajantes são aqueles que partem por partir
Charles Baudelaire 

Canção da errância
Eu sou o irregular o vagabundo o erradio
eu sou da errância e da distância e da errática
e proibida margem de outro rio.
Haverá sempre em mim a linha matemática
e a gramática secreta do Padre António Vieira.
A minha terra é sempre em terra estranha
quem me quiser procure na fronteira
eu sou de algures entre o azul e a Espanha. 
Manuel Alegre in “Alentejo e Ninguém"

Do meio caminho entre um poema de Manuel Alegre e uma recente viagem à Alemanha surgiu a necessidade de esboçar uma breve reflexão sobre o que é isto de viajar.
Tenho para mim, que o acto de viajar é um elemento fulcral e essencial à existência humana. A viagem corresponde a um estádio de ansiosa descoberta que aprofunda a dimensão humana, que nos desperta e nos devolve a um estádio de insegurança e fragilidade primordial, permitindo assim, uma subtil aproximação às coisas fundamentais. A experiência da viagem corresponde a uma transformação espiritual em que “nada nos pertence, excepto as coisas essenciais: ar, sono, sonhos, o céu – tudo coisas que tendem para o eterno…” (Pavese, Cesare in “Estranha Sedução” de Ian McEwan).
Normalmente associamos a viagem à ideia de movimento, representando, mais que um simples deslocamento físico no espaço e no tempo, a necessidade crucial de experiências novas e renovadoras. A viagem corresponde a uma vontade de mudança e transformação interior. Viajar “afasta o espírito do que é supérfluo e inútil; e o corpo reencontra a harmonia perdida – entre o homem e a terra.” (Berto, Al in “O anjo mudo")

Viajar! 
Perder países!
Ser outro constantemente
Por a alma não ter raízes
De viver de ver somente!
Não pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausência de ter um fim,
E da ânsia de o conseguir!
Viajar assim é viagem.
Mas faço-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem
O resto é só terra e céu. 
Fernando Pessoa

O facto de nunca na história da humanidade se ter viajado tanto como na actualidade põe-nos uma questão: Será que a humanidade se está a aproximar de uma dimensão espiritual única? Não creio.
Muitas vezes se confunde o verdadeiro viajante com aquele que simplesmente entra num avião ou no carro e se desloca para um determinado destino. Viajar não corresponde unicamente ao movimento perceptível da pessoa que vai de um lugar para outro, nem tão pouco existe um único conceito de viagem. Fernando Pessoa viajava dentro do seu próprio quarto, para Pavese era, simplesmente, “uma brutalidade”. Para Kerouac era alienação pura. O verdadeiro viajante não é um turista, o verdadeiro viajante é um ser interrogativo e diletante. Desafia as normas e os conceitos pré-estabelecidos e não lhe interessa o lugar de chegada mas antes as nuances do seu percurso. O verdadeiro viajante só existe sem roteiro.
Thomas Mann, na célebre Montanha Mágica, diz na pele do jovem Hans Castorp, que a viagem à semelhança do tempo gera o olvido desligando a pessoa humana das suas contingências e pondo-a assim num estado livre e primitivo. Não terá Jack Kerouac encetado todas as suas viagens por esta mesma razão? E não estará esta mesma necessidade implicita em todas as grandes viagens?
O que de significativo existe nas verdadeiras viagens, tal como nas obras de arte, não se esgota na sua descrição, é antes de mais um processo enaltecedor do humano que nos atravessa deixando a sua marca de forma indelével. Não querendo transformar esta breve reflexão na descrição de qualquer viagem que já tenha encetado, escusei-me a descrever trajectórias ou monumentos, na tentativa de não reduzir o acto de viajar à factual polaroid.
Das minhas viagens prefiro recordar lugares extintos, sensações frágeis e indistintas que o tempo teima em apagar sem sucesso. Da finura de determinados factos vivenciais não quis que ficasse a sua história mas a verosimilhança sensorial de ter vivido e reencontrado num outro lugar/tempo uma experiência semelhante, que se por um lado amplia os significados atribuidos ao acto de viver, por outro lado lhes dá uma dimensão espiritual profunda.

Fotografia: mymonobrow

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