sexta-feira, abril 23

A sede de amor

Fonte: Caderno de Sociologia

Em The Normal Chaos of Love (1995), Ulrich e Elisabeth Beck-Gernsheim examinam a natureza tumultuosa das relações pessoais, os casamentos e padrões de família num mundo em rápida mudança. Os autores argumentam que as tradições, regras e linhas de orientação que governam as relações pessoais já não se aplicam, e que os indivíduos são actualmente confrontados com uma série interminável de escolhas, que fazem parte do processo de construção, ajustamento e melhoramento, ou dissolução, das uniões que formam com os outros. O facto dos casamentos serem actualmente uniões voluntárias e não relacionamentos que obedecem a motivos económicos ou que são impostos pela família, acarreta tanto novas liberdades como novos constrangimentos, exigindo um grande empenho em termos de esforço e dedicação.
Para esses autores a nossa época está repleta de interesses conflituosos entre a família, o trabalho, o amor e a liberdade para prosseguir objectivos individuais. A colisão é sentida de uma forma mais incisiva nas relações pessoais, particularmente quando existem duas “biografias de mercado de trabalho” em vez de uma.
Os autores querem dizer com esta expressão que (…) um número crescente de mulheres tem carreiras profissionais no decurso das suas vidas. Outrora existia uma maior tendência por parte das mulheres para trabalhar a tempo parcial fora de casa, ou retirar um tempo significativo às suas carreiras para o dedicar à criação dos filhos. Estes padrões são hoje em dia menos fixos que antigamente; tanto os homens como as mulheres dão hoje uma importância enorme às suas necessidades pessoais e profissionais. Os autores concluem que as relações na nossa época moderna são, por assim dizer, muito mais que relações. Não só o amor, o sexo, os filhos, o casamento e os deveres domésticos são tópicos de negociação nas relações, mas também o são os tópicos que têm a ver com o trabalho, a política, a economia, as profissões, e a desigualdade. Os casais modernos enfrentam um conjunto variado de problemas, que vão dos mais mundanos aos mais profundos.
Sendo assim, talvez não seja surpreendente que o antagonismo entre homens e mulheres se encontre em crescimento. Ulrich e Elisabeth Beck-Gernsheim defendem que a “batalha entre os sexos” é o “drama central dos nossos tempos”, como o mostram o crescimento da indústria de aconselhamento matrimonial, os tribunais de família, os grupos de auto-ajuda marital, e os índices de divórcio. Todavia, embora o casamento e a vida familiar pareçam muito mais débeis do que antigamente, ainda são muito importantes para as pessoas. Os divórcios são cada vez mais comuns, mas os índices de novos casamentos são elevados. A taxa de natalidade pode estar em declínio, mas existe uma grande procura de tratamentos de fertilidade. Menos pessoas podem desejar casar-se, mas o desejo de viver com outra pessoa e fazer parte de um casal continua certamente firme [como é confirmado, por exemplo, pelo aumento das uniões de facto]. O que é que poderá explicar estas tendências opostas?
De acordo com estes autores, a resposta é simples: o amor. Ulrich e Elisabeth Beck-Gernsheim argumentam que a “batalha dos sexos” a que se assiste hoje em dia é o mais claro indicador da “sede de amor” sentida pelas pessoas. As pessoas casam-se por causa do amor e divorciam-se por causa do amor; as pessoas empenham-se num interminável ciclo de esperança, arrependimento e novas tentativas. Enquanto por um lado as tensões entre homens e mulheres tendem a aumentar, por outro lado permanece uma grande fé e esperança na possibilidade de encontrar um grande amor que conduza a uma maior realização pessoal.
Pode-se pensar que o ‘amor’ é uma resposta muito simplista para responder às complexidades da época actual. Mas Ulrich e Elisabeth Beck-Gernsheim argumentam que é precisamente por o nosso mundo se ter tornado tão opressivo, impessoal, abstracto e em mudança constante, que o amor se tornou cada vez mais importante. De acordo com estes autores, o amor é o único lugar onde as pessoas podem verdadeiramente encontrar-se e ligar-se a outras. Num mundo de incerteza e risco como o nosso, o amor é real:
“O amor é a procura de nós próprios, é o desejo ardente de realmente entrar em contacto comigo e contigo, partilhar os corpos, os pensamentos, encontrar-se um ao outro sem nada a esconder, fazer confissões e ser perdoado, é compreensão, confirmação e suporte no que foi e no que é, é o anseio por um lar e pela confiança para contrabalançar as dúvidas e ansiedades geradas pela vida moderna. Se nada é certo e seguro, se até mesmo é arriscado respirar num mundo poluído, então as pessoas seguem os sonhos sedutores do amor até estes se transformarem em pesadelos.”
Segundo estes autores, o amor é ao mesmo tempo desesperante e doce. É uma “força poderosa que obedece às suas próprias regras e que inscreve as suas mensagens nas expectativas, ansiedades e padrões de comportamento das pessoas”. No nosso mundo flutuante o amor tornou-se uma nova fonte de fé.»

Anthony Giddens, Sociologia, 5ª edição, F. C. Gulbenkian, 2007, Lisboa, pp. 180-182.

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