segunda-feira, março 1

Ética e Deontologia Médica

Hoje apresentamos uma reflexão do Professor Anselmo Borges e do Professor Juan Masiá Clavel sobre antropologia, bioética e religiões, extraída do site da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Aborda uma nova perspectiva da medicina, mais holística, com mais respeito pelo que é Ser Humano. Algo que é novo, mas também um regresso à origem da própria Medicina.

Prof. Anselmo Borges – Introdução sobre o conceito de saúde
 
A palavra saúde vem do latim salus, que significa também salvação ou são.

O que significa ter saúde? Para ter saúde é necessário que todos os órgãos funcionem de forma harmoniosa no quadro holístico do organismo. Neste sentido, a palavra saúde refere-se ao bem-estar geral resultante do bom funcionamento de cada um dos órgãos.
A OMS propõe uma definição mais alargada de saúde que engloba o bem-estar físico e psíquico do indivíduo na sociedade – conceito biopsicossocial. Assim, o conceito de saúde implica também a existência de uma boa relação – consigo, com os outros, com a natureza (o estado do tempo, clima, paisagem influenciam o estado de saúde), e com a transcendência, isto é, uma boa relação espiritual. O conceito de saúde requer a existência de uma boa relação mesmo com a doença e até, no limite,uma boa relação com a morte. Para compreender o Homem é necessária uma visão unitária deste. Não obstante, este ser unitário só se pode compreender a si mesmo em relação.Neste ponto é interessante notar a relação da palavra salus (saúde) com apalavra são. Santo é aquele que é São (ex. São João). Também na língua inglesa está presente esta relação expressa na notável semelhança entre as palavras santo – holy e saúde – health que convergem para the whole – a totalidade, o todo. O conceito de saúde prende-se então com a existência de uma boa relação com a totalidade, a realidade no seu todo.

Na sua etimologia, também a palavra medicina se relaciona com o conceito holístico e o conceito de equilíbrio. A palavra medicina tem uma origem comum com a palavra meditação. Como médicos, mas em primeiro lugar como pessoas, temos a tarefa humanística de promover a saúde e bem-estar das pessoas. Desde a época do dualismo cartesiano, surgiu um conceito errado de saúde que coloca o médico no lugar de um técnico com a “função de arranjar as peças deuma máquina”. Do médico espera-se mais do que um conjunto de conhecimentos técnicos, espera-se que trate a pessoa, sendo esta constituída por um corpo orgânico que vive subjectivamente, um corpo sujeito.A Ciência evolui e transforma-se rapidamente. Com o advento das neurociências, encontramo-nos num momento de mudança de paradigma e levanta-se a questão – será que algum dia vamos conseguir “dar conta” do Homem do ponto de vista científico, isto é, do ponto de vista das ciências objectivantes? Ou seja, será que algum dia vamos compreender o Homem na sua totalidade? Provavelmente não. O Homem por mais que tente ser objectivo, nunca o consegue completamente. A pergunta pelo Homem é uma pergunta muito especial, na medida em que o perguntante, o perguntar e a coisa perguntada, identificam-se, são o mesmo – o próprio Homem. 

Nesta altura o professor contou a seguinte história: Dois jovens peixes encontram-se a nadar e um pergunta ao outro –“onde é o oceano?” Não sabendo a resposta, decidem colocar a questão a um peixe mais velho e sábio. Este, surpreendido pela questão, replica-lhes – “Como é possível que vocês que nasceram, cresceram e vivem no oceano, não saibam onde é que este fica?” Com esta história pretende-se exemplificar que, da mesma forma que o peixe não pode sair do oceano para o ver de fora, também não é possível ao Homem distanciar-se completamente de si mesmo para se conhecer da perspectiva de um observador externo e objectivo. As neurociências reconhecem que nunca possuirão o Homem de modo redutor e o enigma humano permanecerá. O Eu, a Liberdade, não poderão ser encontrados e explicados pela análise de ondas cerebrais ou dos resultados de umaTomografia por Emissão de Positrões. Para conhecer o Homem completamente seria necessário conhecer toda a sua história, a dos seus antepassados, a história do mundo, retrocedendo até ao Big Bang. Da mesma forma, desconhecemos o futuro doHomem, o que este virá a ser.

A relação médico-doente, vai além da relação entre o técnico e a “máquina desarranjada”, ela consiste num pacto entre duas pessoas, uma das quais especializada num dado domínio do saber. O acto médico foi descrito como a entrega de uma liberdade do doente à consciência do médico, um encontro entre uma liberdade e uma consciência. Isto encontra-se ilustrado na fábula de Egídio sobre o Cuidado: O Cuidado ia a passear e em dado momento encontrou argila, com a qual moldou uma figura. Afeiçoou-se de tal forma à figura, que pediu a Júpiter que lhe insuflasse um espírito, ao que este acedeu. Havia agora necessidade de dar nome à figura. A Terra e Júpiter disputavam entre si a oportunidade de dar nome à figura, defendendo a Terra que lhe deveria ser dado o seu nome, já que a figura era feita de argila que viera do seu seio, e retorquindo Júpiter que era seu o mérito de lhe ter insuflado o espírito. Concordaram então em apelar a Saturno para que resolvesse a questão. Saturno determinou que a figura se chamaria Homem (ex humo) – feito de húmus, significando terra fértil. Decidiu ainda que, no momento da sua morte, o Homem entregaria o corpo à Terra de onde provinha e o espírito a Júpiter, que lho concedera, mas enquanto vivo, estaria entregue ao Cuidado. Ser Homem é então estar entregue ao Cuidado. O filósofo Martin Heiddeger defende que o Cuidado constitui a estrutura originária e essência de ser Homem. A palavra cuidar tem origem no latim cura, sendo esta raiz comum à da palavra curar. Curar/ cuidar é então uma importante tarefa do Homem.

Prof. Juan Masiá Clavel:

Os antigos chineses descrevem 3 classes de médicos:
  • Os médicos mais ou menos bons – que curam bem doenças, mas apenas curam doenças;
  • Os médicos muito bons – que curam doenças e doentes;
  • Os médicos óptimos (super-bons) – que curam doenças, doentes e o país.
Com esta comparação pretende-se ilustrar a relação entre a Medicina e a Ética– a Bioética – que estabelece a ponte entre o cuidar da vida (bios) e o cuidar daconvivência humana (ethos).

A Bioética surge nos anos 70 e é interessante notar que este movimento não surgiu associado a filósofos ou teólogos, mas a pessoas como Potter (oncologista) e Hellegers (obstetra), revelando que esta preocupação com a Ética veio de dentro, do campo da Medicina, da ciência, da biotecnologia. A Medicina e a Ética colaboram no sentido de cuidar da vida, cuidar de toda a vida e cuidar da vida entre todos. A Ética não surgiu para atacar a Medicina e é necessária a colaboração entre ambas para desfazer muitos mal-entendidos e desinformação existentes nesta área. Em que aspecto se assemelham a Medicina e a Ética? Médicos e eticistas são irmãos gémeos e ambos têm como interesse máximo a pessoa. Seria equívoco considerar que a Medicina se ocupa do corpo e a Ética, Filosofia, Religião, se ocupam do espírito. A pessoa é um todo. Em japonês tanto a palavra coração/espírito como a palavra corpo se pronunciam “shin”. Um famoso médico, humanista e filósofo defendia que na expressão “corpo e alma” o “e” está a mais, defendendo uma perspectiva holística que elimina esta dicotomia. 

Neste contexto, o Prof. Anselmo Borges contou outra história: A mãe diz ao filho: “A avó morreu. O seu corpo vai para a terra e o seu espírito vai para Deus. Quando tu morreres também é assim – o teu corpo vai para a terra e o teu espírito vai para Deus”; e o filho perguntou: “E então, e eu?”. O Homem não pode ser visto como uma alma que carrega um corpo, nem como um corpo contendo uma alma. A saúde é vista como a harmonia “corpo-alma”, harmonia com o todo, harmonia da pessoa com os outros. Ao passo que na língua portuguesa ou inglesa existe apenas uma palavra para designar vida, na língua japonesa existem cerca de 7 a 8 palavras para designar diferentes perspectivas sobre a vida – vida biológica, vida quotidiana, vida de família,vida de trabalho, vida psicológica são designadas por termos distintos. Uma palavra particularmente interessante é a palavra Inochi, cuja origem remonta à antiguidade e designa Vida, a vida num sentido mais profundo, vida eterna, vida num sentido alargado, uma visão de conjunto sobre a vida. Medicina e Ética aproximam-se no sentido em que cuidam da Vida, cuidam da pessoa, mas não cuidam apenas da vida humana, cuidam da vida animal, vida ecológica, vida do planeta.

Falar de Bioética não se resume a abordar questões sobre o início e fim davida, eutanásia e aborto ou questões tecnológicas como a utilização de células estaminais, transplantes e fertilização in vitro. As questões bioéticas são antes de mais questões de justiça. A abordagem ética ao problema da SIDA é uma questão de justiça e de direitos humanos. O tratamento da SIDA em África não passa apenas pelo envio de médicos e recursos médicos em falta (como frigoríficos para armazenamento dos medicamentos e seringas). É necessária toda uma estrutura de base, uma rede de suporte que, infelizmente, falha, como por exemplo a existência de electricidade. Esta questão envolve problemas políticos, económicos, culturais e sociais, e todos estes problemas têm de ser contemplados pela Bioética. A abordagem das questões bioéticas não pode limitar-se ao dever do médico para com o doente, à relação médico-doente, a estas duas pessoas, pois cada um destes sujeitos se encontra inserido em muitas redes e sistemas. A abordagem das questões éticas tem de ser interdisciplinar.A Bioética inicia-se então como uma conversação interdisciplinar numa sociedade laica e plural, que tem de ser feita numa linguagem compreensível por todos, mas simultaneamente não permitir que ocorram imposições éticas políticas ou religiosas. Pretende-se uma ética de valores, o que não é sinónimo de uma ética de receitas fabricadas. As grandes dificuldades no debate sobre a limitação do esforço terapêutico, o aborto ou a lei da investigação biomédica, devem-se em grande medida às dificuldades no diálogo ético. A solução destas questões requer o debate informado, apoiado em conhecimentos científicos e reflexão. Se o que determina a posição de um indivíduo relativamente a uma questão ética se resume ao facto de o seu partido ou religião defenderem essa posição, o debate não é possível. Não se pretende cair no extremo de acatar todas as posições religiosas, nem no extremo de excluir completamente a religião da discussão de temas bioéticos, nem tão pouco se trata de privilegiar uma religião em função de outra. A questão não se prende com a religião em causa, mas com a mentalidade da pessoa com quem se pretende dialogar, ou seja, o problema surge quando a pessoa cai no fundamentalismo religioso, em vez de manter uma mentalidade aberta ao debate. É o fundamentalismo que inviabiliza o debate bioético.Será que a Bioética é única, universal, ou existem diversas bioéticas? Não se pode falar de uma Bioética universal. As diferenças religiosas, mas sobretudo as diferenças culturais (num sentido mais lato), influenciam o debate bioético nas diferentes partes do globo. Por exemplo, devido a estas diferenças culturais, a utilização da pílula e o debate ético sobre questões relativas à transplantação de órgãos no Japão tiveram lugar bastante mais tarde do que na Europa. Da mesma forma, a discussão de questões éticas relativamente à investigação em células estaminais ou à fertilização in vitro não fazem sentido em muitos países pobres de África. De modo semelhante pode-se colocar a questão: as culturas são algo fechado em si mesmo ou existe algo de transcultural? Existe transculturalidade. Contudo, esta deve ser encarada como um ponto de chegada, não como um ponto de partida no sentido do etnocentrismo e da imposição de uma cultura sobre outras. Existem, todavia, questões de justiça primordiais e universais como o acesso universal aos cuidados de saúde, a distribuição justa dos recursos médicos. Este é um problema de grande importância, debatido continuamente. No entanto, existe ainda grande influência de interesses políticos e económicos (de empresas, nomeadamente empresas farmacêuticas), que colocam entraves a este acesso universal aos cuidados de saúde, mesmo em países que dispõem de tantos recursos médicos como os EUA. O diagnóstico é de grande importância em Medicina. Um médico incapaz de diagnosticar e que se limita a tratar sintomas, é um mau médico. Em Ética, o estabelecimento de um “diagnóstico” é de igual importância. Para estabelecer um diagnóstico são essenciais dois aspectos: a consulta de evidência científica e consultada lei – aspecto técnico e mensurável, e um aspecto humano, não mensurável – as preferências do paciente, a sua visão da vida. Esta área do não mensurável levanta diversas questões. Tomando como exemplo a questão da limitação do esforço terapêutico: o facto de um recurso ser considerado excessivo/extraordinário não significa que se trate de um recurso caro ou tecnologicamente muito complicado. Uma medida pode ser simples e não ser adequada ao paciente, e um mesmo recurso pode ser considerado ordinário ou extraordinário em função das circunstâncias.

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