segunda-feira, março 1

Afinal o que é tradição? O que é cultura?

Saiu hoje no Diário Digital uma notícia que diz que o sector cultural e criativo em Portugal originou quase 3,7 mil milhões de euros no ano de 2006, tendo sido responsável por 2,8% de toda a riqueza criada nesse ano em Portugal, superior ao contributo das indústrias alimentares e bebidas ou dos têxteis e vestuário. No mesmo dia, Gabriela Canavilhas, Ministra da Cultura, afirma, de acordo com o Jornal Público, que o sector cultural "tem possibilidade de ser um motor económico" e que há que encontrar outras orientações que não "a constante dependência do Orçamento de Estado". Isto poucos dias depois de ter criado uma secção de Tauromaquia no Conselho Nacional de Cultura, que gerou petições contra e a favor, defendendo aqueles que são a favor que a secção é importante para defesa da "tradição e da cultura em Portugal" e pela "preservação de fauna e flora, pelo ambiente, companheirismo e amizade que ensina, pelas famílias que dela sobrevivem, pelas acções comunitárias que organiza e ajuda e pela actividade económica que gera".

Ora, quer-me parecer que a Cultura não precisa da tauromaquia. E a tauromaquia é tradição? Talvez. É cultura? Não no seu sentido original, de cultivar o solo e cuidar, mas talvez no sentido antropológico. Mas serão tradição e cultura algo de estático?

Deixemos Paulo Varela Gomes responder, com uma crónica publicada há dois dias, no Público, com o nome Morrer como um Touro:


O Ministério da Cultura resolveu criar uma secção de tauromaquia no Conselho Nacional de Cultura a pretexto de que lidar touros seria uma tradição cultural portuguesa a preservar. Mas a tradição é mais antiga, do tempo em que humanos e animais lutavam na arena para excitar os nervos da multidão com o sangue e a morte anunciada. A piedade, que é um valor mais antigo do que Cristo, veio, na sua interpretação cristã, salvar disto os humanos. Esqueceu-se, porém, dos animais.

Há um momento nas touradas em que o touro, muito ferido já pelas bandarilhas, o sangue a escorrer, cansado pelos cavalos e as capas, titubeia e parece ir desistir. Afasta-se para as tábuas. Cheira o céu. Vêm os homens e incitam-no. A multidão agita-se e delira com o sangue. O touro sabe que vai morrer. Só os imbecis podem pensar que os animais não sabem. Os empregados dos matadouros, profissionais da sensibilidade embaciada, conhecem o momento em que os animais “cheiram” a morte iminente. Por desespero, coragem ou raiva (não é o mesmo?), o touro arremete pela última vez. Em Espanha morre. Aqui, neste país de maricas, é levado lá para fora para, como é que se diz? ah sim: ser abatido. A multidão retira-se humanamente, portuguesmente, de barriga cheia de cultura portuguesa, na tradição milenar à qual nenhuma piedade chegou

Os toureiros têm pose que se fartam (e com a qual fartam toda a gente). Pose de hombre, pose de macho. Mas os riscos que de facto correm são infinitamente menores que a sorte que inevitavelmente espera os touros, que o sofrimento e a desorientação que infligem aos touros para o seu próprio prazer e o da multidão. Dá vontade de dizer que quem se porta assim, quem mostra orgulho de se portar assim, tem entre as pernas, e não apenas literalmente, órgãos bem mais pequenos que aqueles que os touros exibem. Os toureiros são corajosos mas entram na arena sabendo que haverá sempre quem os safe, senão à primeira colhida, então à segunda. Às vezes aleijam-se a sério e às vezes morrem, o que talvez prove que os deuses da Antiguidade são justos, vingativos e amigos de todos os animais por igual. Os touros, esses, não têm ninguém que os vá safar em situação de risco, estão absolutamente sós perante a morte. Querem os toureiros ser hombres até ao fim? Experimentem ser tão homens como eram os homens e os animais na Antiguidade: se ficarem no chão, fiquem no chão. Morram na arena. É cultura. A senhora ministra da Cultura certamente compensará tão antigo costume.

Também era da tradição, em Portugal por exemplo, executar em público os condenados, bater nas mulheres, escravizar pessoas. Foi assim durante milénios. Ninguém via mal nenhum nisso a não ser, confusamente, com dúvidas, as próprias vítimas. Até que a piedade, na sua interpretação moderna e laica, acabou com tão veneráveis tradições.

Que será preciso para acabar com a tradição da tourada? Que sobressalto do coração será necessário para despertar em nós a piedade pelos animais?

Paulo Varela Gomes (Historiador), “Cartas do Interior”, Público, 27.02.2010, P2, p.3.

A tradição pode evoluir para touros bravos, como este, aqui ao lado. Respeitados e preservados como seres vivos mas também como testemunho de uma época que já passou.
A tradição pode evoluir para uma Agência Espacial Luso-Brasileira, conforme a notícia anterior aqui divulgada. 

A tradição pode evoluir para a saudade de um futuro que nos cabe fazer acontecer, em vez de apenas saudade de um passado que nos mantém ancorados, como barcos que apodrecem por falta de uso, falta de vento, falta de visão.

2 comentários:

Paulo Borges disse...

Cabe a nós que a tradição evolua nesse sentido!

Unknown disse...

Tradição é alguma coisa que se transmite e se traz do passado, um pouco como a imagem de Eneias trazendo às suas costas Anquises, seu pai, na Eneida, o que representa o respeito pela família e pelas origens. Mas só faz sentido trazer para o presente o que foi bom no passado e o que nos eleva enquanto homens. Estas vagas reminiscências de circos romanos com laivos de adoração ao boi Ápis dos egípcios e a Minotauro dos minóicos já não tem razão de ser no século XXI. O mundo mudou e, tal como proíbem lutas de cães e de grilos, também deviam proibir espectáculos degradantes em que se provoca o sofrimento de outros animais. Quanto tempo mais vamos permitir que o "homo sapiens sapiens" seja qualquer coisa como um “macaco assassino”?

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